UNO Septiembre 2016

Patria ou muerte? Patria

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São 11 da noite em Havana. O dia não foi propriamente de sonho para um turista que visita Cuba pela primeira vez, que andou meses a poupar para lá ir e tudo o que pedia era bom tempo. A chuva caiu copiosamente durante toda a tarde e o mar das Caraíbas mais parecia o da Europa do norte. Revolto, com vontade de engolir toda a terra que lhe aparecesse à frente, indiferente aos turistas que atravessaram o atlântico à procura de uns dias de descanso. Depois do jantar restava-me o consolo das diosas de carne que me aguardavam no paraíso sob as estrelas. Os bilhetes não foram fáceis de arranjar e o espetáculo no Tropicana, um dos cabarés mais antigos e mais conhecidos de Havana, prometia ser inesquecível. “Não há luz, o espetáculo desta noite foi cancelado”, disseram-me à entrada. A frente fria que chegara naquela tarde a Havana deixou meia cidade às escuras. Não era um furacão, nem tão pouco uma tempestade tropical, era apenas chuva e vento, mas foi o suficiente para provocar estragos numa rede elétrica débil e numa cidade onde os geradores existem, mas ou não funcionam, ou não conseguem resolver tudo. Era o meu primeiro choque de frente com o embargo que dura há décadas. Dei instruções ao taxista para dar meia volta e voltar para trás. Regresso ao Hotel. Desisto. A minha noite acabava ali.

Um dos erros mais comuns em política é considerar que ela se basta a si própria. Que a partir de um guião ideológico, seja ele qual for, se consegue construir um Estado

Lembrei-me desta noite quando vi a fotografia do Air Force 1 a chegar a Havana. A imagem é notável, não pela beleza, mas pelo simbolismo que carrega. Tudo aquilo é História. As casas de lata, os carros de museu, o emaranhado de cabos elétricos espalhados de forma anárquica pela cidade, as pessoas de olhos postos no céu, o avião que traz um Presidente dos EUA a Cuba, 88 anos depois. Os 150 quilómetros mais longos da história (é a distância de Cuba aos EUA) tornaram-se, de repente, mais curtos. Mas afinal, o que mudou? Porquê tanto tempo? Tanto sofrimento? O que mudou no mundo, nos Estados Unidos e em Cuba para tudo se tornar aparentemente tão simples? Mudaram os protagonistas da História.

Um dos erros mais comuns em política é considerar que ela se basta a si própria. Que a partir de um guião ideológico, seja ele qual for, se consegue construir um Estado, independentemente das pessoas e dos protagonistas que estão à frente desse Estado. Que mais importante que as pessoas, são os processos. Quem assim pensa tende a sonhar que um dia a História lhe dará razão. Que todos aqueles que discordam deste caminho são apenas limitados, perigosos reacionários que desejam o poder. Foi este tipo de pensamento que levou a vários conflitos ao longo da História. Que provocou angústia, sofrimento e morte. Que atrasou civilizações, que empobreceu Estados e tornou o mundo mais desigual.

Patria ou muerte. A frase fez história e ficou na História não como uma pergunta, mas como uma escolha que era dada aos cubanos

No caso de Cuba não há inocentes. Se a luta de um povo pela soberania é tão legítima quanto a luta pela vida, a arrogância de quem se acha dono da verdade, persegue, prende e mata o pensamento livre, pode destruir por completo qualquer vitória. Mesmo que seja uma vitória contra a ditadura. Foi o que aconteceu em Cuba. A troca de um ditador por outro. Mas há outro tipo de arrogância. A de quem julga que o poder económico é um cheque em branco na política, interna e externa. A arrogância da chantagem, do bloqueio, da pressão, a arrogância de querer obrigar um povo a sublevar-se. A arrogância de um Estado (os EUA) que se aliou a Fulgencio Batista, um ditador de quem o mundo já quase não se lembra, mas que os cubanos nunca esquecerão. O que mudou em Cuba, o que mudou nos Estados Unidos, foram os protagonistas.

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O processo não foi, não é e não será fácil. Basta pensar que em 1977, Jimmy Carter deu o primeiro passo, com o retomar das relações diplomáticas, ainda que de forma muito limitada, e foram precisos mais 37 anos para chegarmos a 2014 e ouvirmos Barack Obama anunciar a reabertura do diálogo diplomático entre os dois países, que permitiu, entre outras coisas, o retomar dos voos regulares entre Cuba e os EUA. Famílias reencontraram-se, abraçaram-se e beijaram-se. Pessoas, como nós, que nunca foram como nós. Em fim de mandato, Barack Obama quis deixar mais uma marca na História, indiferente ao que o Senado americano pensa, consciente de que a História é isso mesmo, história. Não pode ser apagada, não deve ser ignorada, mas tem sempre uma página em branco à espera que alguém escreva mais alguma coisa. Por outro lado, em Cuba, há um Castro que é diferente do irmão. Muito diferente? O suficiente para que um Presidente Americano possa visitar o país 88 anos depois e a embaixada possa voltar a abrir portas. Não é coisa pouca. O amargo de boca que Fidel Castro não conseguiu, nem quis, disfarçar depois de ter visto Obama ao lado do irmão, prova isso mesmo. “Nós não precisamos que o império nos dê nada”, escreveu o ex-presidente cubano no Granma, o jornal oficial do partido comunista cubano.

Patria ou muerte. A frase fez história e ficou na História não como uma pergunta, mas como uma escolha que era dada aos cubanos. Ou somos livres ou mais vale que a morte nos leve. Os cubanos fizeram a escolha certa, mas foram enganados. Escolheram a pátria, mas nunca foram verdadeiramente livres. Houve quem quisesse continuar essa luta pela liberdade, e quem o tenha feito com galhardia, sem medo da morte mesmo que fosse esse o preço a pagar. Patria ou muerte? Acrescentemos-lhe um ponto de interrogação para que, perante a pergunta, possamos encontrar a resposta certa. Para que, perante as novas circunstâncias, possamos finalmente trazer Cuba para o século XXI e acabar com o gelo de uma guerra que há muito deixou de fazer sentido. Patria ou muerte? Patria. Porque a morte só faz sentido quando acaba a esperança e não há alternativa. Porque em democracia, há sempre alternativa e a esperança não tem prazo de validade.

Anselmo Crespo
Sub-diretor da TSF
É Sub-diretor da TSF, uma das principais rádios de informação em Portugal. Anteriormente foi Editor de Política da SIC, um dos principais e mais antigos canais de televisão em Portugal e da SIC Notícias, o primeiro canal de notícias 24 horas em Portugal, que é ainda líder de audiências. Jornalista há 18 anos, esteve na SIC durante 14 anos, onde foi primeiro repórter de economia, depois coordenador do principal jornal da estação (Jornal da Noite), posteriormente ocupando o cargo de Editor de Política. Foi autor, coordenador e coapresentador dos programas Conversas Improváveis e Quem Diria na SIC Notícias. É licenciado em Ciências da Comunicação, pela Universidade da Beira Interior e mestre, também em Ciências da Comunicação, pela Universidade Autónoma de Lisboa. É ainda docente do curso de Comunicação Social e Multimédia no Instituto Politécnico de Leiria. Lançou dois livros: “Um Mundo Faz de Conta” e “Improváveis no Sofá”. [Portugal]

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